sábado, 29 de dezembro de 2007

NÃO RECEIE VOLTAR AOS SONHOS

Um maçante raio de sol atravessa a fresta da janela do meu quarto às cinco horas da insipiente manhã. Bem preciso como se calculado simetricamente por algum engenheiro esperto, atinge diretamente o meu olho direito e incomoda, como a dizer-me sobre o novo amanhecer em andamento e exigir que eu desperte por inteiro e recomece a rotina. Ainda ressoa em meus tímpanos o eco do silêncio da noite finda, mas os sons matutinos, se bem que estejam engatinhando é certo, porém são irremediavelmente inadiáveis, já vicejam juntamente com os raios solares nada tímidos que adentram as frestas mais pequeninas.
Diviso a cortina mal fechada, motivo da intromissão ousada do iluminar fora de hora a meu ver, desvio o rosto daquela luz intermitente e ousada, retomo o lençol amarfanhado que escapou do meu corpo durante o remexer noturno comum enquanto dormimos e procuro cobrir-me para tentar escapar do dia que nasce buliçoso. Mas não é fácil. Lá fora, não sei por que cargas d’água, e isso acontece de súbito e é bastante freqüente onde moro, um motorista mal educado buzina à toda por alguma razão boba e acelera seu carro, provocando-me frêmitos de fúria. Suspiro conformado. O que posso fazer a esse respeito? Praguejar, talvez, mas isso não leva a nada, é inócuo. Em razão disso, percebo ser quase impossível permanecer no leito por mais tempo. O estuque do meu quarto para o qual lanço o olhar desconcertado responde com sua brancura imaculada. O lustre apagado me saúda naquele seu mutismo impenetrável e distante de natureza morta e moldada pela mão do homem.
O celular, refestelado no criado mudo, desligado, parece um bichinho de estimação a dormitar sereno envolto numa áurea de calmaria profunda, tamanha sua imobilidade e seu mutismo exacerbado. Num súbito clic automático ele se anima e parece realmente vivo a trazer-me as notícias de perto e de longe. Barulhento e insistente. O celular tem semelhança com a criança mimada exigindo atenção para o seu ínfimo universo.
Ainda é densa a bruma embaralhando-me o cérebro não totalmente desperto. Espreguiço-me, alongando o corpo e entregando-me ao novo dia. Sento, acabrunhado, olhos fechados sem acreditar que necessito mesmo sair da cama tão cedo. Poderia muito bem permanecer abraçado aos meus sonhos e ficar indiferente ao cotidiano, mas qual, o quê! Resignado, procuro as sandálias, contudo que é delas, para onde foram, quem as terá tirado do lugar? Ganharam existência própria e se foram, para completar o transtorno? Bah!, desisto e piso o chão frio, recuando logo a seguir. Será que, como na “Metamorfose” de Kafka, transformei-me numa horrenda barata? Ou estarei “Em busca do tempo perdido” de que falava Proust em sua literatura volumosa e complexa, mas de extraordinária beleza? Decerto os sinos não dobram por mim como por ti dobram segundo Ernest Hemingway apregoava naquele famoso café de Paris até hoje visitado por turistas. Nem sou o velho que bravamente lutou contra o enorme peixe descrito por ele na sua também ficção literária que ganhou o mundo. Na verdade, sinto-me mesmo é igual ao “Menino de Engenho” de José Lins do Rego e estou extasiado por daqui penetrar o universo criativo de “Gabriela, cravo e canela” em que me meti para ver, em meio ao povaréu abismado e satisfeito, a cabrocha Gabriela usando saia curta e subindo o telhado da casa para pegar o papagaio do menino que se enroscou por entre as telhas.
Que fabuloso devaneio!! Nada a estranhar, se me faz favor, é que na noite anterior, antes de dormir, revi e folheei boa parte do acervo de minha biblioteca, ali viajando pela espetacular imaginação dos clássicos, deixando-me levar pelas asas da criatividade dos bons escritores universais. Li como nunca, varando os sinais da noite e bebendo com avidez poções de textos saudáveis e imorredouros, saciando minha sede de boa literatura.
Encontrei as sandálias exatamente onde as deixei ontem, completamente acordado e em paz com a existência. A essa altura já não me importuna a réstia solar nem a alvura estucada que me encandeia; não me preocupa o silêncio do lustre nem sua inércia cônica; às favas os néscios do trânsito com seus imbécibeis desconcertantes e assustadores. E o celular? Que espere paciente. Estou no embevecimento das nuvens fofas, e somente isso interessa. Lençóis e travesseiros amarfanhados sobre a cama são detalhes insignificantes, para tudo há solução quando se tem boa vontade e coração leve. É tão salutar descobrir-me vivo e em plenas condições de deleitar-me! Nada como livros a mancheia para iniciar cada amanhecer, porque é de ilusões que se move o mundo. De modo que não receie voltar aos sonhos. Eles impulsionam o viver, são os jardins da alma e o principal combustível do existir.

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