sábado, 5 de janeiro de 2008

BANQUETE LITERÁRIO


Fui menino sonhador a pensar continuamente sobre o futuro que viria. Igual a outras crianças, eu também gostava de brincar com o pião, jogava bola, apreciava contar as mentirosas estória de Trancoso juntamente com os demais meninos da rua, no entanto mais que tudo isso eu, sobretudo, lia e lia muito, em especial – quem se lembra? – aquelas revistas de capa-e-espada que contavam mirabolantes estórias de reinos, princesas lindas e hábeis cavalheiros a defendê-las com suas espadas afiadas, flamejantes e implacáveis. Por horas em me entretinha folheando qualquer texto que me caísse às mãos, não recusando nem mesmo as bulas quando nada mais havia para ler. Se um exemplar da revista O Cruzeiro, para meu deleite, aparecia à minha frente, ávido eu apreciava cada página e deixava a imaginação voar livremente pelo universo dos sonhos com a sabedoria dos articulistas, mormente Davi Nasser e Raquel de Queiroz, esta sempre na última página com seus textos vigorosos. O amigo da onça, famosa criação da época, lavra do pernambucano Péricles Maranhão, também era um dos meus preferidos pela sagacidade de suas tiradas mordazes. Eu descobria o novo e o insólito e ia armazenando nos arquivos da memória aquele benfazejo amontoado de cultura diversificada. As revistinhas em quadrinhos do Zorro, Roy Rogers, Tarzan, Jim das Selvas, Fantasma, Pato Donald e tantas outras fizeram o usufruto de meus instantes solitários. Sentado no velho e já bastante gasto sofá de três lugares de minha mãe, os olhos tesos, sem piscar pela atenta observação das letras formando palavras e capítulos, eu esquecia as horas e, quase sempre, nem lembrava de brincar ou de me alimentar até ouvir as admoestações de mamãe a respeito “da perda de tempo só lendo e lendo sem querer fazer outra coisa, esse menino...”
Na adolescência, seguindo esse ritmo acelerado de intensa busca pelo prazer encontrado nos livros, meu coração já pulsando descontrolado pelas garotas bonitas do bairro por quem eu ia me apaixonando, dedicava com avidez a maior parte do meu tempo à leitura, desta feita ampliando os horizontes do conhecimento com compêndios de autores mais voltados a um universo textual de melhor qualidade. De Machado de Assis li os romances A mão e a Luva, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Iaiá Garcia, além de algumas poesias de rara beleza, a exemplo de Crisálidas e Falenas; José de Alencar me deslumbrou com Iracema, a virgem dos lábios de mel, O Guarani, A pata da Gazela, Cinco Minutos, Diva e outros romances. Viajei através do Romantismo e do Barroco, passeei pela beleza dos escritores portugueses e mergulhei, enfim, no mundo universal dos grandes clássicos, com passagens por outras searas como os grandes poetas brasileiros, russos e ingleses. Assustei-me com A Divina Comédia, de Dante, fiquei perplexo com os absurdos, a meu ver, percebidos em O Príncipe, de Maquiavel; estremeci ao ler Fausto e Werther, de Goethe; quase chorei com o brilhantismo das cenas descritas no livro A Mãe, de Máximo Gorky; e então, certo dia alguém me emprestou um dos livros mais densos e emocionantes que os meus olhos jamais viram: Os Irmãos Karamázov, de Fiodor Mikháilovitch Dostoievski, de quem também li e reli, deslumbrado, Crime e Castigo. Foram grandes obras verdadeiramente inesquecíveis que marcaram minha alma. De certa feita, adoentado e febril, deitado numa rede e devidamente enrolado num lençol grosso para suar depois de um chá de limão com alho, contrabandeei para sob as cobertas um exemplar de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, devorando-o inteirinho de uma só “deitada”, e desse momento em diante não sosseguei mais enquanto não li Por quem os Sinos Dobram e Adeus às Armas, do velho escritor que deu fim à própria vida enfiando o cano de uma espingarda na boca e disparando, num gesto tresloucado e incompreensível. De Fernando Sabino, o primeiro livro foi O Homem Nu, os demais vieram em cascata, da mesma forma com Carlos Drummond, Guimarães Rosa( Grande Sertão, veredas, o destaque maior!), depois Gabriel Garcia Márquez( Cem anos de Solidão é insuperável e inteligente; O amor nos tempos do cólera, igualmente), Graciliano Ramos(Vidas Secas, que maravilha exemplar de literatura primorosa; Angústia; Memórias do Cárcere, entre outros, todos belíssimos). Eu lia tudo quase em desespero, parecendo alguém famélico que enxergava um banquete diante de si e se lambuzava todo com a farra da comilança. Então, um dia, meio que de súbito, caiu-me às mãos o livro Crítica da Razão Pura, de Imanuel Kant. Embora não conseguindo alcançar por inteiro o conteúdo da famosa obra, algo ficou para desembaralhar os fragmentos de minhas idéias e resultar nalgum empirismo meio torto de meus despretensiosos textos. Sem dúvida, os livros, companheiros fiéis e constantes de minha vida até hoje, têm trazido à realidade do meu cotidiano indizíveis prazeres que somente o espírito sente e conserva para sempre.
Gilbamar de Oliveira

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