domingo, 11 de janeiro de 2009

O PEQUENINO FLANELINHA

Estacionei o velho carango devagarinho sob a sombra entrevista ao lado da lanchonetezinha mal-acabada daquela estrada poeirenta à medida que o testemunhava afogueado pelos vulcânicos raios solares e muito bem ciente de que o radiador estava em petição de miséria de tanta água fervendo em seu interior, e deixei-me relaxar sobre o assento, a cabeça virada para trás como a temperar a coluna vertebral angustiada pela tensão da viagem iniciada em Natal. Estirei o olhar sobre a paisagem desolada da vizinhança, a claridão desembestada da tarde incipiente, no rosto franzido os óculos escuríssimos sem dar conta de tanto bilho no ar, no chão de barro seco, no negrume do asfalto e nas pedras da caatinga. Suspirei fatigado, as juntas do corpo enferrujadas, a mente esbaforida de tanto estresse no comando da direção, querendo colo e descanso. Vínhamos nós, eu e minha esposa, ao sabor do bafo quente do vento, queimando os pneus do velhusco escort na rodovia fumaçante, e nada se assemelhava mais a um oásis do que aquele pedaço de lugar longínquo, bem no oitão do mundo e meio que desmembrado de qualquer resquício de civilização, se bem fosse aprazível em tais circunstâncias, pelo menos a meu ver naquele embaraçante momento.

As coisas foram acontecendo, então, como se programadas para ser assim tão-logo chegássemos àquelas plagas tomadas de desencanto. Primeiro vieram as duas garotas com ar de timidez saltando à vista. Elas foram se achegando a pisadas de temerosos, na leveza de ansiosas borboletas se aproximando de prometedoras flores únicas, mas cautelosas e sensíveis aos possíveis impasses do desconhecido à frente. Ambas segurando balde, vermelho um deles, azul o outro, os dois cobertos por impecável paninho branco, elas como se gêmeas siamesas de tão juntinhas e passinhos iguais. Raquíticas em seus corpinhos miúdos, olhos a expressar a triste dormência dos pântanos solitários, total ausência de sorriso nas faces, encabuladas pela ousadia a que eram obrigadas, tartamudeantes, geladas de ansiedade. Deitaram sobre mim aqueles pares de olhinhos perecidos hà muito pela falta de alegria e, descobrindo os baldes num gesto autômato, ofereceram-me cocadas, no balde vermelho as brancas, no azul, as escuras. Umas de leite, outras de coco, a trinta centavos a unidade.

Senti meu coração tamborilar em silêncio ensurdecedor e eu quase emiti perceptível brado lamentoso ao vislumbrar as meninas e as cocadas no mesmo ângulo de visão toldada pela onda de melancolia a transbordar-me o peito. Voltei-me para minha esposa a buscar adjuntório ante tão constrangedora situação, e ela valeu-me de pronto ao sussurrar-me o propósito de não comprar aquelas gulodices de difusa origem, porém, apesar disso, seria de bom grado ofertar às duas uma prenda em forma de pecúnia para cada. Para não vê-las corroídas de decepção. Concordei aliviado por não ter de adquirir os tais doces produtos vendidos pelas pequenas pobrezinhas, mas, ao mesmo tempo, não deixá-las voltar à tristeza da recusa imperturbável. Por conseguinte, a elas demos o valor combinados em nossos olhares e lá se foram as duas levando suas cocadas para vender em outra freguesia realçada em mais dois carros vindo na nossa direção.


E quando nós já tentávamos respirar aliviados pela favorável solução da súbita pendência, dessas realmente inesperadas e abruptas, e pretendíamos, por fim, sair do carro que já estava a pegar fogo de tão quente no seu interior, veio ele em seguida, aquele toquinho de gente em forma de menino com desgrenhados cabelos amarelados pelo furor do sol, as pupilas esverdeadas como duas esmeraldas recém garimpadas na vau do rio, contudo magro de riso e de nutrição. "Boa tarde!", cumprimentou ele todo educado, numa das mãos uma flanela bem andada nos anos e carregada das poeiras esfregadas alhures, segurando um balde descolorido na outra. Também ele exibia o mesmo raquitismo apavorante e um enfastiado ar de precocidade espantosa. Pelos traços e semelhanças notei tratar-se do irmão das vendedoras de cocadas.


Atordoado e um tanto surpreso ante tamanho demonstrativo de polidez, respondi no mesmo tom, aguardando-o dizer-me a que vinha, embora, é obvio, eu imaginasse. A flanela e o balde o denunciavam. Ainda assim esperei a figurinha esboçar seu pensamento, o que logo aconteceu pois ele não se fez de rogado. "O senhor me permite limpar o pára-brisa do seu carro?" A interrogação lhe saiu dos lábios numa cadência simpática e controlada. Sem responder de imediato, voltei o rosto à minha esposa como sempre faço em situações semelhantes e vi em sua expressão o brilho de compreensão e cumplicidade tão inerente a nós dois quando o momento assim exige. Recado transmitido e compreendido pelo olhar, respondi positivamente e o tiquinho de gente subiu no pneu dianteiro do meu carro começando a executar a tarefa a que se propunha. " Hoje já ganhei mais de trinta reais", confidenciou-me o garoto quase à queima-roupa. Queria conversar, pensei. "Mas...você estuda?", indaguei. "Sim senhor, até já passei de ano com meus irmãos." "E seu pai, o que faz na vida?" Olhando-me bem nos olhos e ferindo-me com o verdume dos seus, respondeu-me: "Bebe!"


Deixei-o em paz na interlocução com seus fantasmas e enfrentei o ardor solar, preferindo essa agrura natural do que tornar a ouví-lo e às suas tristezas. As meninas das cocadas brancas e escuras nos baldes coloridos descansavam lá adiante com seus rostos entregues a devaneios; alguns viandantes entravam e saíam carregando queijo de coalho ou de manteiga, ovos caipira e água mineral; os ponteiros do relógio no meu pulso seguiam a entediante rotina. O tempo logo cumpriu seu papel. Quando voltei ao carro, verifiquei que o pequenino flanelinha havia feito um péssimo serviço, deixando mais fiapos no parabrisa do que limpando os traços da poeira da estrada. Ainda assim me enterneci, percebendo, por fim, não ser por sua obra que pagamos mas pela compaixão geralmente borbulhante n'alma dos que vão e vêm por ali ao vê-lo entregue à azáfama para a qual não tem o menor talento.

Todavia ele não sorriu nem mesmo quando recebeu o dinheiro. Apenas disse "obrigado!" e saiu correndo na direção de outro carro prestes a estacionar na sua área de trabalho.

31 comentários:

FERNANDINHA & POEMAS disse...

QUERIDO GILBAMAR, A TUA CRÓNICA COMOVEU-ME... TANTAS NECESSIDADES
PASSAM ESSAS CRIANÇAS, ASSIM COMO MUITAS OUTRAS NESTE MUNDO, DE MEIA DÚZIA DE RICAÇOS, QUE SÓ SE IMPORTAM COM ELES E O BEM ESTAR DAS SUAS FAMÍLIAS...
AÍ COMO AQUI, A VIDA SÓ ESTÁ BOA PARA OA LAPIDORES DO ESTADO... UMA BOA SEMANA, UM ABRAÇO DE CARINHO E AMIZADE,
FERNANDINHA

Paula Barros disse...

Situações assim, tão frequentes por aqui também, nos corta a alma.


Consegue relatar fatos cotidinos de uma forma impressionantes. Quem sabe escrever, sabe.

O pior é saber que muitas vezes os pais não tem responsabilidade sobre os filhos, e até se aproveitam para usá-los. Muitas dessas famílias recebem bolsa disso, bolsa daquilo...

Agora do jeito que gosto de cocada não sei se teria resistido. rsrsr

Adorei o olhar cúmplice seu e da sua esposa.

abraços

Unknown disse...

ahh claroo. =D

valeeu a visiita.
e pode deixa quee a partir de agora vou escrever o que eu queroo.

beeijo

Menina do Rio disse...

Uma realidade diaria nas ruas do Rio, meu amigo. E muito pouco a se fazer por esses amiguinhos.
Infelizmente...

Deixo-te um beijo

Laura disse...

Bem, eu adoro cocada, em Luanda também bvendiam as quitandeiras, adorava. vc podia comprar uma cocadinha, saborear..e dar na mesma mais uns reais, como aliás, fez, e o menino, tadinho..o pai bebe e já faz muito, na expressão desolada dele devia ver-se a tristeza já que não conseguiu sorrir. Pobres meninos de ninguém, pobres meninos desprezados...
Que Deus os ampare no futuro e no presente e que me breve tudo isso acabe e haja pão, educação e amor para todos, do melhor modo possivel..Um beijo da, laura..

Unknown disse...

me gusta como relatas las situaciones diarias...........sabemos que los padres son los responsables de la educación y alimento de sus hijos!
un abrazo enorme, querido amigo, desde Argentina..............

ツ●♥♪ LUNATICA ツ●♥♪ disse...

Gracias por la visita Gilbamar... Aunque para mi no exista las vacaciones, sé feliz: Tal vez por que en el escribir se va las preucupaciones y nos liberan tenciones; tener una familia y amig@s es maraviloso... Te deseo unas semanas geniales y un enero cuánto vas a disfrutarlo... por tu visita, siempre bienvenido en mi casa


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Así que te saludo este año

“Que Dios te bendiga en el Año 2009 con un deseo grande de ser grandes bendiciones en cada momento del día y todos los dias, buscando a Cristo primeramente.”

Agulheta disse...

Gilbamar! Muito bem esta descrição da vida do coatidiano,se passa isto em muitos lugares,mas este aqui foi bem descrito.
Beijinho e boa semana

Lisa

•.¸¸.ஐJenny Shecter disse...

São textos como o seu que me param, me fazem ficar, me marcam... Me dói tanto ver infâncias roubadas, crianças que não podem brincar, que não podem ser crianças... Não é justo, não é certo!

beijos e borboleteios

Ana Sofia V. Sousa disse...

Agradeço imenso por apreciar o meu trabalho! e por segui-lo!

Uma boa semana
e continuação de boas inspirações :)

Sonia Schmorantz disse...

Talvez a nova semana tenha dificuldades, ainda assim haverá alegrias...
Talvez a nova semana tenha preocupações, ainda assim haverá soluções...
Talvez a nova semana traga alguns atritos, ainda assim trará o desafio do aprendizado do convívio...
Talvez não seja exatamente como a queremos, mas podemos nos surpreender e alegrar com o que nos trará.
Tomemos a nova semana com disposição de vivê-la do melhor jeito, de abraçar a parte feliz e de aprender com o que contrariar a nossa expectativa.
Tenhamos boa vontade com a nova semana e um sentimento de profunda gratidão à vida.
Um abraço

Gabiprog disse...

Nunca debemos olvidar el mundo paralelo de la pobreza, esas personas tan cercanas a nosotros y que a veces pensamos no existen en nuestras sociedades modernas.

Un abrazo.

Gabiprog disse...

La pobreza esta ahí. Cerca nuestro.
Susurrando la suerte que tenemos de haber nacido donde hemos nacido.

Un abrazo.

Val Du disse...

Oiiii.
Passe no meu blog; tenho algo para você.

Beijos

SuEli disse...

Bom Dia, Gilbamar

Só Deus Pode Todas as coisas. A nós, diante destas situações, cabe fazer o que vocês fizeram: Seguir a intuição e o coração e entregar tudo nas Mãos de Deus.

Uma abençoada semana para todos vocês,
Fiquem com Deus,
Beijos,

:.tossan® disse...

Gosto mais desse teu lado contista. Muito bom mesmo! Abraço

Luiz Caio disse...

Olá Gilbamar! Como vai?
Infelizmente esta triste realidade está por toda parte! Dificil é saber o que fazer para ajudar... É tanta gente em situação dificel! São tantas crianças pelas ruas... É complicado! Muito complicado!

TENHA UMA ÓTIMA SEMANA!

Cynthia disse...

Pase a leerte y dejarte mi cariño..
gracias por estar.

besos

João Videira Santos disse...

Li com interesse e gostei.

Parabéns!

LaMar disse...

Cariño, Muchas gracias!!!

abraços y beeijo

desde Ecuador

Suspiros do Silêncio disse...

TRISTE REALIDADE, MAS MUITO BEM RELATADA. PERCEBO QUE VC É UM GRANDE OBSERVADOR, CONSEGUE PASSAR DE FORMA CLARA OS FATOS.

ABS.

Anônimo disse...

Obrigada pela visita. Muito criativo seu blog, excelentes textos, belas poesias. Volte sempre.

Abraço Afetuoso.

Carla disse...

tem vida a tua escrita
parabéns
beijos e boa semana

pico minha ilha disse...

Uma realidade de vida e um olhar entre sim e sua esposa, um olhar diz tudo.Abraço e uma boa semana para os dois

Marinel disse...

Sólo quien tiene corazón sensible es capaz de ver más allá y sentir el dolor ajeno,la pobreza,la desolación...
Dice mucho de uno relatar la cotidianeidad dura de los demás que no son tan afortunados como nosotros con tanta sensibilidad...
Me cuesta un tanto entenderlo todo,pero creo que la idea principal la he abstraido...
Besos,Gilbamar.

elisabete fialho disse...

Gilbamar, bonita crónica de factos reais.
Tão reais que sempre é mais facil virar a cara e fingir que não se Vê
Fico sempre na duvida o que é mais grave
Se os factos serem tão crueis ou o facto de quem vê continuar a nada fazer
Um abraço bom amigo

Papoila disse...

Querido Amigo:
Comovente crónica, admiravelmente bem contada que me deixou os olhos vidrados. Adorei essa cumplicidade de olhares, essa forma de exprimir-se com sua mulher.
Beijos

Je Vois La Vie en Vert disse...

Amigo Gilbamar,

Tinha deixado um comentário mas parece que falhou. Estou muito cansada para recomeçar.

Um beijo verdinho

Se não conseguir abrir facilmente o meu blog com a sua nova aparência, utilize o Firefox.

Ana Maria disse...

Nao é justo acontecer tantas barbaridades.
Bjs!

DESESTRESSA MANO disse...

opiparo....

abraços e sucesso

Unknown disse...

Caro amigo,
esta crónica leva-nos a refletir no quanto tantas crianças ainda sofrem, por terem pais irresponsáveis que preferem se entregar ao vício do alcool, em vez de olharem por seus filhos e tudo fazerem para melhorar as suas vidas.
Estas crianças não carecem só de alimentos e conforto. Estas crianças carecem sobretudo de amor, carinho e atenção!

Beijinhos e tudo de bom para si e para os seus,
Ana Martins