quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A TERNURA DO AMOR

A TERNURA DO AMOR

Gilbamar de Oliveira

Vi-os quando relanceei o olhar ao longo da praça onde me encontrava: uma bela garota na mais linda flor da idade e um garboso e atrapalhado rapazola imberbe. Formavam um casal muito jovem, não eram mais que adolescentes, um e outro magro e com ar de quem está em fase de crescimento, mas ela já exibindo o florescer de um corpo anguloso e bem modelado, os cabelos compridos revoltos pela brisa suave, o rosto lindo, de tez rosada, lábios cheios e sensuais de menina-moça. Já ele, com o jeito de meninão, lembrava aqueles garotos protagonistas de propaganda do dia dos pais, tímido, sério, encabulado.
Caminhavam de mãos dadas sorrindo um para o outro. Pareciam felizes e entusiasmados pelo vigor da idade.
Acomodaram-se um banco a poucos metros de mim, entretidos no diálogo sonhador, típico da maravilhosa idade, fitando-se com ternura.
Embora demorasse na apreciação do espetáculo que era aquela menina graciosa, quando eles sentaram e ficaram enternecidos um com o outro voltei minha atenção para o livro que trazia nas mãos, deixando o jovem casal livre de minha bisbilhotice. Ademais, eu não podia saber que os dois protagonizariam, logo a seguir, uma cena inesperadamente comovente.
Tornei a vê-los depois de decorridos cerca de quinze minutos. Continuavam conversando, mas percebi que algo mudara no semblante de ambos, mostravam-se taciturnos, ela emburrada e gesticulando muito, ele um tanto sombrio e meio casmurro. O jovem casal de namorados discutia baixo, mas acalorado.
Aborrecida, a bela adolescente parecia ainda mais bonita.
Divertido com a maneira como mantinham o diálogo brusco e o modo quase suave e ao mesmo tempo quase severo como brigavam, fiquei a observá-los discretamente, embora não me fosse possível ouvir o que diziam, o que aguçou ainda mais minha curiosidade. Que vontade de ouvi-los! Contudo, logo conclui não ser necessário escutar suas palavras porque seus gestos eram tão eloqüentes, tão visivelmente manifestos. Eles gesticulavam com a veemência de quem estar realmente zangado e exige uma retratação imediata. Algo indubitavelmente sério acontecia entre eles naquele momento, não tive a menor dúvida.
E quando ela, repentinamente, saiu de perto dele e foi sentar-se na ponta do banco enquanto o braço do rapaz, acompanhando as palavras que proferia febril, dançava no ar, o pobre rapazola meio surpreso e, talvez, até abalado, decerto procurando entender porque tudo aquilo estava ocorrendo, sorri indulgente na minha cômoda posição de espectador.
Penso que esgotaram os argumentos, certamente não havia mais nada a dizer, porque, súbito, calaram-se cabisbaixos, a angústia visível em seus rostos ruborizados. De vez em quando, porém, lançavam olhares sorrateiros um para o outro, tornando a baixar rapidamente a cabeça se cruzavam os olhos. Isso durou alguns minutos – uma eternidade para eles, com certeza. Depois, assumindo um fingido ar de indiferença, ela levantou-se e esperou...sem saber, na verdade, o que deveria ou poderia esperar naquele instante de corações desencontrados. E começou a balançar a perna direita numa clássica atitude de indisfarçável irritação. Ele, pobre coitado, sem saber bem o que fazer, não sabia nem onde colocar as mãos, se nos bolsos ou na cintura, fez o mesmo. E de tal modo se desconcertaram, que, sem qualquer alternativa vez que o silêncio incomodava e causava ansiedade, de repente saíram a andar lentamente distantes um do outro, calados, a brisa ousada e intrujona brincando com os sedosos cabelos dela e espalhando-os no ar como asas farfalhando no ato do vôo. E ela, aborrecida com o vento, jogava a cabeça para trás para acomodar as madeixas brincalhonas.
Os dois passaram por mim ainda entregues à absoluta arrogância do mutismo, e eu percebi o rosto dela enrubescido e triste, os olhos um tanto marejados, os lábios fazendo beicinho de mágoa. Ela não queria dar o braço a torcer, mas estava sofrendo. Pude notar, também, o ar melancólico estampado na face do garoto, sua agonia interna mas tão perceptível nos olhos angustiados.
Acompanhei-os com o olhar, interessado naquele breve interlúdio de paixão jovem e querendo ver até onde os dois permaneceriam naquela forçada indiferença. Então pensei com meus botões, ansioso, o coração a mil: alguém teria que ceder e abrir a porta do entendimento ou, pelo menos, entreabrir a janela da possibilidade do diálogo na busca do perdão mútuo.
Lá adiante, quase no final da praça, por fim, ambos pararam ao mesmo tempo como num acordo tácito, sem ânimo de se encarar embora estivessem frente a frente. Seus olhos se voltavam para o chão, as mãos do jovem agora metidas nos bolsos, o pé direito fazendo desenhos bobos no piso duro da praça, ela segurando cadernos e livros nos braços cruzados sobre o busto em formação, ambos desprovidos de ânimo para esboçar qualquer gesto; tive a impressão de que ela soluçava mansamente à guisa de uma criança perdida na multidão, pois seus ombros se mexiam de quando em vez e ela procurava baixar ainda mais a cabeça, já a ponto de encostar o queixo no tórax. O silêncio persistiu entre os dois durante alguns astronômicos minutos, cada um entregue aos próprios pensamentos e buscando nas profundezas do coração algo para ser dito, ao menos uma palavra para salvar aquele momento especial. Contudo, como poderiam balbuciar frases conexas ainda que encontrassem milhões de termos próprios para desfazer o impasse? Aos poucos, logo concluíram ser impossível falar apesar das palavras borbulhando em suas bocas e a ansiedade explodindo por todos os seus poros. Mesmo à distância, senti, pelo jeito deles, como gostariam de conversar, de sorrir, de se abraçar, de afirmar a certeza de seus sentimentos à flor da pele, de dizer que se queriam. Mas não fizeram nada disso, o orgulho talvez, a insegurança provavelmente, o receio de tomar a iniciativa tudo tolheu o que certamente desejavam fazer ou falar. Assim, nenhum deu qualquer chance aos argumentos, à possibilidade de recuperar os fragmentos da paixão despedaçada. Muito lentamente, então, como se combinados, viraram, deram as costas um para o outro e seguiram em direções opostas, sem acrescentar mais nada à expressão de seus rostos tristes.
Lá no meu lugar ocupando um banco da praça, longe deles, comovido diante daquela surpreendente ocorrência sentimental, respirando fundo, acompanhei-lhes a maneira compassada como se deslocavam, parecendo contar os passos um a um. Tive a nítida impressão de que, se vencesse o orgulho, a linda garota andaria apressada de costas ao encontro dele ou giraria o corpo para correr até onde ele estava, tão relutante se mostrava em prosseguir a caminhada no sentido contrário ao dele. O garoto, por sua vez, não agia de maneira diferente, era se como não estivesse andando, as pernas pesavam toneladas, as passadas eram em câmara lenta, ele sentia dificuldade em comandar seus movimentos. – na verdade, não tinha a menor vontade, nem o mais leve resquício de ânimo de continuar a distanciar-se dela. Naquele momento, creio, ele seria capaz de cair ajoelhado aos pés dela para suplicar o almejado perdão, para voltar a tê-la em seus braços.
Os dois, porém, mesmo contra o desejo de renunciar ao orgulho, se foram quase arrastando os pés.
Por um breve intervalo, enquanto eles se afastavam em direções opostas, desviei minha atenção para uma insistente borboleta que esvoaçava no meu campo de visão e perdi a seqüência dos acontecimentos. Ao deitar-lhes novamente o olhar, arrebatado por uma emoção que me injetou um frêmito de contentamento e sem saber as razões que os teriam motivado, vi o adolescente correndo esbaforido e sorridente ao encontro da garota, que já o esperava toda ruborizada e dominada por uma indescritível expressão de felicidade no rosto iluminado pelo sorriso. O que teria acontecido nos poucos segundos em que me entreti com a borboleta metida? Quem havia cedido ao impulso de construir a ponte para unir novamente o que a discussão tola havia separado? Confesso que não tive como saber, a borboleta esvoaçante e ousada não me permitiu.
Mas a partir daquele fato novo eu não quis perder nenhum lance do filme ao vivo a que estava assistindo, e fiquei torcendo, emocionado, que ele chegasse logo perto da garota. Eu estava parecendo um torcedor fanático num final de campeonato.
Alcançando-a, por fim, ela a abraçou com suavidade, ela correspondeu cheia de alegria e ficaram enlaçados em plena rua durante intermináveis minutos, sorridentes e felizes. E choravam ao mesmo tempo, mas eram transbordantes lágrimas de indizível contentamento, pude notar, e seus corações, estou certo, pulsavam num ritmo único, apressado, de felicidade reconquistada. A custo separaram-se, enxugaram a torrente de lágrimas e caíram novamente nos braços um do outro. A meu ver, aquele prelúdio de amor juvenil ganhara contornos de beleza quase cinematográfica. Eu os avistava e me emocionava, tomado pelo arroubo da ternura. O quadro era lindo e encantador. Ri quando eles, a seguir, trocaram singelos olhares de reconciliação, beijaram-se levemente nos lábios, e foi um beijo de entendimento, de recomeço, beijo de portas se abrindo para a vida tornar a pulsar. Depois, deram-se as mãos e se foram.
Dei por mim sorrindo, enlevado, o coração aos saltos, atrevidas gotas lacrimejantes sulcando meu rosto, sentado num banco da praça e meio atordoado, mas festejando o amor, com o livro fechado na mão.

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