terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O BEM-TE-VI APAIXONADO E OS OUTROS

Diária e invariavelmente um bem-te-vi apaixonado me acorda às 04:40h da madrugada com seus apelos românticos/dramáticos à amada, que, tímida, após escutar os insistentes e prolongados gritos do seu enamorado, emite ingênuos, castos e quase inaudíveis piados, parecendo encontrar-se longe dele, mas como que autorizando-o a fazer-lhe a corte. Ah!, ele então, todo sassarico, recomeça e recrudesce seus arroubos entusiasmados, certamente, a partir daí, feliz pelo êxito da sedução, e dá a evidente impressão de estar desfiando seu canto bem próximo ao meu ouvido porque seus trinados parecem bombas intermitentes de alta potência. Aos poucos, felizmente, o bicho diminui a zoadeira, a fêmea o acolhe e, felizes, vão os dois para algum motel escondido por entre os galhos das árvores na cidade. Até chegar a tal ponto, porém, longos minutos se esvaem enquanto a calma do alvorecer é quebrada dessa maneira estridente pelo passarinho paquerador. Do alto do edifício onde moro brota uma extrema vontade de abrir a janela e esbravejar contra esse bicho que incomoda aos outros por conta de sua paixão arrebatadora. Quem pode com os pássaros, no entanto? Deles são o espaço e as madrugadas, o amanhecer e as folhas que escondem seus ninhos. Vocês pensam que a provação óbviamente não apenas minha, mas de todos os habitantes do prédio, termina com os dois pombinhos voando apressados na direção do motel das aves? Nananinanão! E sabem por que? Exatamente às 05:30h, um vizinho liga seu velho buggy caindo aos pedaços e faz um barulho deveras ensurdecedor com o cansado motor de fusca que usa e torna a perturbar-me o indigitado sono. Escuto quando ele abre a garagem alugada no condomínio, liga a sucata ambulante e provoca o maior estrondo do novo dia embrião; depois, desliga a máquina enferrujada, fecha o portão, volta para o protótipo de monstrengo e torna a ligá-lo provocando novo troar, agora ouvido por todos da rua. E se manda, permanecendo no ar por tempo demais aquele som roufenho de tosse braba até desaparecer adiante. E eu fico lá, me remoendo de raiva. Já pensei em descer antes que ele saia e, educadamente portando um porrete estúpido cheio de pontas de prego, dizer-lhe poucas e boas e ameaçá-lo brandindo a arma, mas minha política de boa vizinhança e o desejo incontrolável de continuar deitado prevalecem.
Tá pensando que acabou e agora posso, finalmente, tentar, ao menos, cochilar em paz até a hora de levantar para ir trabalhar? Nada disso novamente, porque em pouco, e por fim, completando os amanheceres intranquilos e agitados que vão de segunda a sexta-feira no caso dos humanos, e a semana inteira no tocante ao bem-te-vi cheio de amor para dar, por volta das 06:45h uma kombi escolar sorrateira, dirigida por um indivíduo já maduro, as cãs aparecendo por cima de sua cabeça com entradas de calvície, surge repentina da esquina, o mocoronga do motorista buzinando feito um condenado em altíssimo som desde o dobrar da esquina até chegar - adivinhem onde! - exatamente no prédio onde resido; em estando defronte ao edifício, ele parece analisar a situação após três segundos sem pressionar a buzina e recomeça de forma mais vigorosa o buzinaço, levando o barulho arrasador do térreo ao último andar, penetrando pelas frestas das janelas e pelos buracos das fechaduras dos quartos e ferindo os ouvidos de todos os moradores do condomínio. Ao menos com este, certo dia, há tempos, conversei para reclamar do problema. Na oportunidade, perguntei qual a possibilidade de ele evitar a barulheira matutina, já que assustava todos da redondeza naquele horário inconveniente, se gostaria de ser abruptamente despertado por seus estardalhaço no começo da manhã, e ele, então, tartamudeou, pediu desculpas pelo exagero, etc e tal, essas coisas, meio constrangido. Expliquei a desnecessidade de tanta buzinada pois que a aluna usuária dos seus serviços poderia simplesmente esperar por ele no horário marcado e pronto, ninguém teria de suportar a ruidosa e malfada estripulia de sua kombi. Ele até que foi gentil em ouvir-me e prometeu deixar de agir como um ganhador da loteria ansioso para informar a todos a sua sorte através de gritos e macaquices.
Mas, qual o quê? Durou só alguns dias a trégua. Logo ele voltou, poucos dias depois, a repetir o barulho da buzina do mesmo jeito, apesar de, após alguns dias, deixar-me esperançoso de ver-me livre do seu buzinaço diário, pelo menos. Bem, o infortúnio permanece. Como não foi possível livrar-me em definitivo da odisséia matinal, procuro, agora, rir dos fatos incongruentes que não posso mudar. De modo que percebi ser a agrura cotidiana um bom e interessante tema para escrever esta crônica sobre amenidades. À guisa de desabafo, se não fora por outra razão mais plausível. Ou um motivo nada saudável, porém engraçado, para sorrir das coisas esquisitas presentes no dia-a-dia de qualquer um de todos nós. Alguém mais passa por esse tipo de aborrecimento por esse Brasil afora?

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