sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

UM FANTOCHE NUM CAVALO DE PAU



Avistei a triste figura do maltrapilho cavaleiro montado em seu pangaré, a trotar sob o sol escaldante numa tarde morta pela solidão em derredor, quando viajava pelos caminhos por demais ensolarados do RN e passava por uma cidadezinha qualquer de beira de estrada. Lá ia ele todo apático em sua tristura desencantada e ensimesmada, o ar sorumbático de quem acabou de saber a pior das notícias. Chamou-me a atenção aquela criatura melancólica por sua impassibilidade e indiferença, seu jeito acabrunhado, seu ar de distanciamento e abandono, sua expressa tristeza indisfarçável. No mesmo instante infinitesimal do piscar d'olhos, então, veio-me à lembrança a tosca e burlesca figura criada por Miguel de Cervantes, mas logo rechacei tal pensamento porque Dom Quixote de La Mancha lutava contra moinhos gigantes, e nesse homem de aparência derrotada não percebi inclinação às batalhas nem demonstração de apego aos conflitos resolvíveis a fio de espada. Pelo contrário, ele transpirava calmaria, sossego e pacifismo.

Algo ainda mais complexo que isso, vi-me propenso a refletir, pois se o fracasso tivesse aparência com certeza teria aquele aspecto soturno.Acompanhei-lhe por instante o trajeto e vi-o seguir, naquele calor abrasante e infernal tão característico do abandonado e sofrido Nordeste, sempre à frente como se em busca de um nada qualquer, deixando que o pobre cavalo buscasse o próprio destino ou se fosse a esmo porque não tivesse razão para determinar objetivos.Talvez estivesse indo a caminho da própria incapacidade de sorrir e ser feliz, pois bem assim estava expresso nos seus ombros caídos e a cabeça sobreposta sobre o tórax, as patas do cavalo pisoteando o chão duro, quente e seco do pobre espaço dividido com os demais cidadãos do lugar que experimentam a mesma sensação do deprimente cotidiano num lugarzinho esquecido e fantasmagórico. Será que ia ou vinha de algum rincão ao léu? Provavelmente apenas perambulava há dias sobre o lombo do animal à espera do último suspiro.

É certo e indubitável, claro, não pude ver-lhe as faces senão através do quase imperceptível perfil, posto que ele ia cabisbaixo, mirando o dorso ossudo do animal e perdido nalgum recanto do seu intrincado eu desvanecido. Será que chorava por alguma razão misteriosa? Óbvio que não, homens daquela espécie certamente não choram, creio. Olhos fechados a refletir, quem sabe? Imagino que cavalgava pensativo sem devanear em nenhum ponto específico, somente se sentindo aprisionado nos desvãos dos porões íntimos e metido a casmurro até mesmo sem ter noção disso. Mas, com certeza, estou seguro de que no rosto daquele homem haveria faces absolutamente covadas, esquálidas, quase desprovidas de carne na quantidade necessária para prover-lhe um rosto próximo do saudável. Naquele seu jeito de coitadinho, de quem tiraram os últimos resquícios da dignidade, o pobre cavaleiro nem de longe lembrava o sertanejo descrito por Euclides da Cunha, sendo ele antes de mais nada um borrão de fraqueza, um pingo no i do impaludismo.

E assim ele enveredava por seu desrumo à procura do vazio, pejado de inquestionável angústia a pressionar-lhe o peito cansado, tombado ao já insuportável peso da vida ressentida e da absoluta falta de sonhos e objetivos palpáveis. Exagero? Não me alerta a consciência no tocante a isso nem salta-me o coração à boca ante tal assertiva, pois não se me exaltava à vista o seu depauperado aspecto de morto-vivo a existir tão-somente pelo instinto? Sim, isso, embora, é provável, aguardando a terminal hora para ir-se desse mundão tomado de agruras e inesgotáveis tormentas cotidianas. Assim me pareceu ele por todos os instantes de minha observação passageira, e nitidamente a criatura como que pretendia fazer questão de demonstrar isso com todas as letras e imagens.

Quando me fui sem tomar ciência de mais nada quanto àquele indivíduo semi-morto sobre um pangaré franzino e ruinzinho de patas, o sol, à guisa de piscar-me o olho quando lhe passavam nuvens sob seu brilho intenso, acirrou-me a imaginação a ponto de ir esboçando, enquanto corria veloz e comia estrada, um desbotado retrato do nosso quixotesco ser nordestino espalhando, aqui e ali, o tristonho arremedo de um cavaleiro desfigurado que, talvez, outrora, tenha sido vaqueiro nas securas garranchudas de algum sítio minchuruca próximo à cidadezinha de beira de estrada jogada à indiferença de quem por ali é obrigado a passar pelas circunstâncias.

Tenho por mim, asseguro, que lágrimas inesperadas desceram-me pelo rosto e salgaram as comissuras de meus lábios ressecados à culpa do espantoso calor reinante nos quadrantes do caminho.

17 comentários:

Unknown disse...

Meu amado esposo, fico aqui pensando o quanto Jesus lhe abençoa dando-lhe perfeita inspiração. Que você continue assim nos presenteando com textos maravilhosos como esse.


Um beijo meu amor!

:.tossan® disse...

Realmente, diferente daquilo que leio de Gilbamar. Muito bom, vc é um artista das palavras. Abraço

Giane disse...

Caro Gilbamar;

Fico encantada com tanta sensibilidade. A descrição é tão rica que pude ver a estrada, o cavalo e seu triste cavaleiro em meio ao clima tórrido da terra nordestina.
Como bem escreveu sua esposa, que você continue nos presenteando com textos maravilhosos como esse.

E vou aproveitar e visitar o blog dela também.
Como já escrevi a um casal de Amigos, não é de admirar que um Homem de Boas Palavras compartilhe sua Vida e seu Amor com uma Mulher de Boas Palavras e viceversa.

Beijos mil!!!

Giane disse...

Oi, Gilbamar!

Você foi convidado a participar de um novo desafio. Acredito que esse tem muito a ver com você e a proposta do seu blog e espero que possa cumprí-lo o mais brevemente possível.

Beijos mil!!!

Anônimo disse...

Meu Deus,maravilhada pela sua Arte!
Acredita,meu Amigo,que "vi" tudo,
"ouvi" e senti (o mais importante)
o q. escreveu.
Beijo.
isa.

SuEli disse...

Bom Dia, Gilbamar

Uma cena pode dar-nos várias impressões e ao mesmo tempo estarmos longe da realidade dela.

A única maneira de ter certeza é perguntando ao ser que está sendo observado o que desejas saber.
Se ele souber responder, teremos a resposta, senão ficaremos com a nossa própria interpretação.

Gostei da crônica, valeu.

Um abençoado final de semana para todos vocês,
Fiquem com Deus,
Beijos,

Cleo disse...

Caro amigo Gilbamar, como já disseram no comentário aqui, dá prá sentir o texto, a tristeza do cavaleiro, e é como se viajássemos contigo na narração. Maravilhoso, continues assim sempre inspirado.

Belo fim de semana.
Beijos
Cleo

Unknown disse...

hola gilbamar!!!!

que don tienes para escribir!!!
se nota la inspiración cuando sale desde el corazón............
felicitaciones por este bello relato!!

un abrazo desde Argentina

Serena Flor disse...

Que texto magnífico meu amigo!
Vejo que voltou mais inspirado que nunca não é? rsrs
Lindo como tudo que leio por aqui meu amigo...beijos e ótimo Sábado pra você!

Laura disse...

Fico pensando que se teve o trabalho de olhar para ele e sentir compaixão, é porque seu coração é enorme para albergar sentimentos lindos!...
Que Deus lhe abençoe e que a ser verdade o que conta; que ELe tenha também em conta o pobre sertanejo, sofrido, montado em seu rocinante. Ao menos que coloque um Sancho pança a seu lado e decerto ele já não mirará só o dorso do cavalo, mas sim olhará para quem o acompanhar!...
Um abraço ternurento deste lado do Atlântico..laura.

•.¸¸.ஐJenny Shecter disse...

Sabe, fui me deixando levar por suas palavras. De repente, fui vendo as cenas. De repente, estava dentro da história, de repente, nem vi que terminava!
Beijos e borboleteios

FERNANDA-ASTROFLAX disse...

QUERIDO GILBAMAR... BEM-VINDO AMIGO... ADOREI O TEU TEXTO... SIMPLESMENTE MARAVILHOSO... UM GRANDE ABRAÇO DE CARINHO,
FERNANDINHA

SAM disse...

Que maravilha de texto....Obrigada, amigo!Um presente para quem le...É o que acho.


Um brilhante e inspirador 2009, amigo!

Beijos

gaivota disse...

leio e sinto o conteúdo do teu lindo texto, parabéns, amigo!
fantoches... cavalo de pau e imaginação nas palavras de quem sabe!
beijinhos

Marta Vinhais disse...

Texto simples, cheio de ternura...
Gostei muito...
Obrigada pela visita...
Até já
Beijos e abraços
Marta

ETERNA APAIXONADA disse...

*****

Também ausente por algum tempo, estou retornando aos poucos aos blogs amigos...
Agradeço sua visita gentil.
Que tenha um ano muito bom em todos os sentidos, junto a sua família!
Bom domingo e uma semana muito feliz!
Abraços

*****

Cadinho RoCo disse...

O cavaleiro da triste figura descrito por Cervantes lá no século XVI pode estar encarnado sim neste personagem que tomou conta de sua inspiração. A espada lança empunhada por D.Quixote é figura de retórica que se trazida à realidade dos nossos dias não estará no contexto da armadura do nordestino brasileiro que traz consigo outros elementos não menos expressivos. O que não diminui em nada a beleza da percepção da sua narrativa.
Cadinho RoCo