quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

NEVE SOBRE OS TELHADOS


Despertei por encanto do silêncio profundo reinando no apartamento, à guisa de minha alma ouvir o som de si mesma e fazer-me abrir suas janelas em plena madrugada vazia de ruídos. Olhei displicente para a janela, de onde resplandecia uma claridade inesperada, quase um banho indiscreto de luz sobre o quarto, a seguir vislumbrei minha amada aconchegada sob nosso edredon aquecido. Ela dormia serenamente linda ao meu lado, o rosto angelical repousando tranquilo sobre o travesseiro macio, seus lábios bem desenhados convidando-me a beijos de amor. E eu aceitei o doce convite, beijando-a suavemente com um frêmito de prazer. Ela sorriu de maneira fascinante como se naquele precioso instante estivesse sonhando comigo a beijá-la e se remexeu graciosa em suas curvas sublimes. 

Levantei-me sem fazer barulho e fui à janela olhar a madrugada, então, surpreso, vi a neve caindo em leves flocos que mais lembravam pedacinhos de papel caindo do céu, como se os anjos brincassem de jogar confete sobre a terra ou, sapecas, estivessem a fazer bolinhas de sabão com as nuvens cheias de espuma. Sorri embevecido, sentindo um frêmito de súbita alegria perpassar-me o rosto, feliz por estar ali assistindo ao belo espetáculo proporcionado pelas poderosas mãos de Deus. O chão se mostrava atapetado de branco, talvez com uma camada de neve próximo dos cinco centímetros, as árvores desfolhadas pelo outono prestes a terminar, as plantas, os telhados, os postes, os carros estacionados, tudo estava coberto pela brancura da neve. Dava para perceber que os carros eram realmente carros somente por seu formato de carro, embora deles não se visse nada além do alvo e grosso manto cobrindo-os inteiramente.

Notei alguns corvos encarapitados nos galhos nus de folhas, porém vestidos de neve, ao lado de outros pássaros para mim desconhecidos sem se mexer, parecendo criaturas mortas e contudo vivas, inertes e ainda assim latentes, pontos perdidos e desencontrados sob o gelo flutuando no espaço e descendo sobre seus corpinhos desagasalhados na proximidade do novo amanhecer. Quase todos os seres vivos dormitavam naquela hora, apenas a natureza e eu nos comunicávamos solenes, ela lá com sua força extraordinária cobrindo tudo com o ar gélido de sua respiração transformada em resquícios de gelo dançando no ar, eu cá atrás da vidraça hermeticamente fechada da janela, protegido do frio causticante através do efeito calefação distribuído por todo o apartamento, o gigante contra o grão de areia, a imensidão do céu contra o amedrontado serzinho escondido atrás da proteção artificial duma construção especialmente preparada para enfrentar e vencer essa diversidade anual tão comum aqui na Suécia.

Deitei meus olhos por sobre a distância das ruas desertas de vida adiante e deixei-me ficar a refletir a respeito da filosofia humana louca e sem desígnios, frágil e inútil, melancólica e desprovida de sentido, pequena e ambiciosa, atrevida como o são todos os que se julgam sábios quando não passam de aprendizes e ignorantes soberbos carentes de sabedoria. A neve lá fora gelada e torturante, eu atrás da janela do apartamento, pelo lado de dentro, aquecido e calmo, ciente de sua força mas zombando dela por me ver na fortaleza de cartas de papelão. A madrugada via-nos na constância de sua infinitude, entregue ao mutismo que lhe é peculiar, nem sendo contra nem a favor, todavia expressando torpe indiferença porque eu nesse cenário não era mais do que um simples risco a mercê do tempo, essa borracha capaz de apagar-me num mero piscar de olhos.

A neve continuou a despencar sobre Malmo, na Suécia, e seus telhados, árvores, carros, chão e bicicletas, eu porém, após gravar essa imagem inesquecível do brasileiro que vê pela primeira vez a neve caindo como se fosse chuva no seu país tropical, retornei ao leito, enfiei-me sob as cobertas, abracei minha amada e procurei dormir novamente à medida que o novo dia, embora escuro pelo inverno europeu, começava a se deixar ver nas horas lentamente passando.

Gilbamar de Oliveira Bezerra

2 comentários:

Penélope disse...

Uma narrativa rica em detalhes e sensibilidades!!!
Um grande abraço!

Unknown disse...

Olá, estou começando um blog de crônicas e gostaria muito que você desse uma visitinha.
minhascronicaseeu.blogspot.com.br